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10 de outubro de 2013

PAPA FRANCISCO: UMA ENTREVISTA HISTÓRICA?

Aqui deixo, para quem quizer ler e, sobretudo, como forma de guardar para memória futura, uma entrevista do Papa Francisco que considero marcante do inicio do seu papado. Não sou crente,mas tal como Scalfari, também penso que este homem, se conseguir fazer o que pensa dever ser a Igreja que dirige, estaremos perante uma "mudança de era". 

Papa Francisco e Eugenio Scalfari: a arte do diálogo


O título é roubado a Hans Kung, que esta quarta-feira comentava dessa forma noLa Repubblica a entrevista publicada na véspera pelo jornal italiano.
O director do jornal, Eugenio Scalfari, estivera com o Papa Francisco uma semana antes. E concluía, após o colóquio: “Este é o Papa Francisco. Se a Igreja se tornar tal como Francisco a pensa e deseja, teremos uma mudança de era.”
Esta nova entrevista do Papa que nem gosta especialmente de entrevistas revela (mais do que as frases mais mediáticas sobre a Cúria ou o Vaticano), a vontade de alguém que insiste sobretudo em falar do que deve ser essencial na mensagem cristã – a pessoa de Jesus. E do modo como isso deve levar os crentes a entenderem-se com os não-crentes que, na cidade dos homens, querem uma outra forma de vida, com mais espaço para todos.
A entrevista surge no contexto da reunião que hoje termina no Vaticano, entre o Papa e os oito cardeais por ele chamados para o novo conselho de consultores, que ele pretende colocar a colaborar estreitamente com ele no governo da Igreja. Há dia, em passagem por Portugal, o cardeal Seán O’Malley, arcebispo de Boston, falava das expectativas de reforma da Igreja que esta reunião trazia – nomeadamente em termos de uma maior colegialidade e participação.
A entrevista publicada pelo La Repubblica sucede a uma troca de cartas entre Eugenio Scalfari e o Papa, publicada há poucas semanas pelo mesmo jornal. Scalfari começou por questionar o Papa, numa espécie de carta aberta, sobre a questão das reformas e o Papa tomou a iniciativa de responder ao director do jornal, manifestando-lhe também a sua vontade de se encontrar com ele.
O texto original da entrevista agora publicada pode ser encontrado aqui.
A tradução aqui utilizada, que apenas foi sujeita a uma pequena revisão, foi feita por Rui Pedro Vasconcelos, da Livraria Fundamentos, de Braga.


Diz-me o Papa Francisco: “O pior dos males que afligem o mundo nestes anos é o desemprego dos jovens e a solidão em que são deixados os velhos. Os velhos têm necessidade de atenção e de companhia; os jovens de trabalho e de esperança, mas não têm nem uma nem outra, e o problema é que já nem o procuram. Foram esmagados no presente. Diga-me: pode-se viver esmagado no presente? Sem memória do passado nem desejo de se projectar no futuro construindo um projecto, um horizonte, uma família? É possível continuar assim? Isto, segundo me parece, é o problema que a Igreja tem diante de si.”
Santidade, digo-lhe, é um problema sobretudo político e económico, que diz respeito aos Estados, aos governos, aos partidos, às associações sindicais.
“Certo, tem razão, mas diz respeito também à Igreja, aliás diz respeito sobretudo à Igreja porque estas situações não ferem apenas o corpo mas também a alma. A Igreja deve sentir-se responsável seja das almas como dos corpos.”
Santidade, diz-me que a Igreja deve sentir-se responsável. Devo deduzir que a Igreja não está consciente deste problema e que o senhor a conduz nesta direcção?
“De certo modo esta consciência existe, mas não de modo suficiente. Desejo que seja ainda mais. Não é este o único problema que temos diante de nós, mas é o mais urgente e o mais dramático.”

O encontro com o Papa Francisco teve lugar terça-feira na sua residência de Santa Marta, numa pequena sala simples, com uma mesa e cinco ou seis cadeiras, e um quadro na parede. Foi precedido de uma chamada que não esquecerei enquanto for vivo.
Fico em choque enquanto a voz de Sua Santidade me fala do outro lado da linha: “Bom dia, sou papa Francisco.” Bom dia Santidade – digo eu –, estou chocado, não esperava que me telefonasse. “Porquê chocado? Você escreveu-me uma carta pedindo-me para me conhecer pessoalmente. Eu tinha o mesmo desejo e por isso aqui estou para marcar o encontro. Vejamos a minha agenda: quarta não posso, segunda também não, poderá ser terça?”
Repondo: é perfeito.
“O horário é um pouco incómodo, às 15 pode ser? Se não, mudamos o dia.” Santidade, está perfeito também. “Então estamos de acordo: terça 24, às 15 horas. Em Santa Marta. Deverá entrar pela porta do Santo Ofício.”
Não sei como concluir a chamada e deixou-me ir dizendo-lhe: posso abraçá-lo por telefone? “Certamente, também o abraço. Depois o faremos pessoalmente, adeus.”
Aqui estou. O Papa entra e dá-me a mão, e sentamo-nos. O Papa sorri-me e diz-me: “Um dos meus colaboradores que o conhece disse-me que você vai tentar converter-me.”
É uma piada, respondo-lhe. Também os meus amigos pensam que será o senhor a querer converter-me.
Volta a sorrir e responde: “O proselitismo é um absurdo solene, não tem qualquer sentido. É necessário conhecer-se, escutar-se e procurar conhecer melhor o mundo que nos rodeia. A mim acontece-me que, depois de um encontro, tenho vontade de o repetir porque nascem novas ideias e descobrem-se novas necessidades. Isto é importante: conhecer-se, escutar-se, ampliar o círculo de pensamento. O mundo é percorrido por estradas que aproximam e afastam, mas o importante é conduzirem-nos em direcção ao Bem.”
Santidade, existe uma única visão do Bem? E quem a estabelece?
“Cada um de nós tem a sua visão do Bem e também do Mal. Nós deveremos incitar a proceder segundo o que, em consciência, se pensa ser o Bem.”
Santidade, já o havia escrito na carta que me endereçou. A consciência é autónoma, disse, e cada um deve obedecer à própria consciência. Penso que será uma das frases mais corajosas ditas por um Papa.
“E aqui a repito. Cada um tem a sua ideia de Bem e de Mal e deve escolher seguir o Bem e combater o Mal como lhe dirá a consciência. Bastaria isso para melhorar o mundo.”
A Igreja está a fazê-lo?
“Sim, as nossas missões têm esse objectivo: individuar as necessidades materiais e imateriais das pessoas e procurar satisfazê-las como podemos. Sabe o que é o ‘ágape’?”
Sim, sei.
“É o amor pelos outros, como o Senhor o anunciou. Não é proselitismo, é amor. Amor pelo próximo, fermento que serve o bem comum.”
Ama o próximo como a ti mesmo.
“Exactamente, é assim.”
Jesus, na sua pregação, disse que o ágape, o amor pelos outros, é o único modo de amar a Deus. Corrija-me se estou enganado.
“Não está. O Filho de Deus encarnou para infundir nas almas dos homens o sentimento da fraternidade. Todos irmãos e todos filhos de Deus. Abba, como ele chamava ao Pai. Eu traço-vos o caminho, dizia. Segui-me e encontrareis o Pai e sereis todos seus filhos e ele se comprazerá em vós. O ágape, o amor de uns pelos outros, dos mais próximos aos mais distantes, é assim o único modo que Jesus nos indicou para encontrar o caminho da Salvação e das Bem-Aventuranças.”
Todavia a exortação de Jesus, que recordamos antes, é a de que o amor pelo próximo seja igual àquele que temos por nós próprios. Por isso aquilo que muitos chamam de narcisismo é reconhecido como válido, positivo, na mesma medida do amor ao outro. Discutimos durante algum tempo sobre este aspecto.
“Para mim – dizia o Papa – a palavra narcisismo não me agrada, indica um amor imoderado a si mesmo e isto não é bom, pode produzir danos graves não apenas à alma daquele que é afectado mas também à relação com os outros, com a sociedade em que vive. O verdadeiro problema é que os mais atingidos por este problema, que é na realidade um distúrbio mental, são pessoas que têm muito poder. Muitas vezes os líderes são narcisistas.”
Também muitos líderes da Igreja o foram.
“Sabe o que penso sobre este assunto? Os líderes da Igreja frequentemente foram narcisistas, lisonjeados e erradamente animados pelos seus cortesãos. A coorte é a lepra do papado.”
A lepra do papado, foi a sua expressão. Mas o que é a coorte? Refere-se à Cúria? – perguntei.
“Não, na Cúria haverá talvez cortesãos, mas a Cúria, no seu complexo, é outra coisa. É aquilo que nos exércitos se designa de intendência, gere os serviços que servem a Santa Sé. Mas tem um defeito: é Vaticano-centrista. Vê e trata dos interesses do Vaticano, que são ainda, em grande parte, interesses temporais. Esta visão vaticano-centrista transcura o mundo que a rodeia. Não partilho desta visão e farei tudo para a mudar. A Igreja é ou deve tornar a ser uma comunidade do Povo de Deus e os presbíteros, os párocos, os bispos com cura de almas, estão ao serviço do Povo de Deus. A Igreja é isto, uma palavra não por acaso diversa da Santa Sé, que tem uma função importante mas está ao serviço da Igreja. Eu não poderia ter a fé plena em Deus e no seu Filho se não me tivesse formado na Igreja e não tivesse a sorte de me encontrar, na Argentina, numa comunidade sem a qual não teria tomado consciência de mim mesmo e da minha fé.”
Sentiu a sua vocação desde jovem?
“Não desde muito jovem. Tive, por indicação da minha família, de ter outra profissão, trabalhar, ganhar um salário. Frequentei a universidade. Tive também uma professora pela qual ganhei respeito e amizade, era uma comunista fervorosa. Muitas vezes lia-me e dava-me a ler textos do Partido Comunista. Assim conheci também aquela concepção muito materialista. Lembro-me de que me fez ter também o comunicado dos comunistas americanos a defender os Rosenberg, que haviam sido condenados à morte. A senhora de que falo foi depois detida, torturada e assassinada pelo regime ditatorial que na altura governava a Argentina.”
O comunismo seduziu-o?
“O seu materialismo não teve qualquer atracção em mim. Mas conhecê-lo através de uma pessoa corajosa e honesta foi-me muito útil, percebi algumas coisas, um aspecto do social, que depois reencontrei na doutrina social da Igreja.”
A teologia da libertação, que o Papa Wojtyla excomungou, estava muito presente na América Latina.
“Sim, muitos dos seus expoentes eram argentinos.”
Pensa que foi correcto o Papa tê-los combatido?
“Certamente davam um seguimento político à sua teologia, mas muitos de entre eles eram crentes e com um conceito muito elevado de humanidade.”
Santidade, permite-me dizer também algo sobre a minha formação cultural? Fui educado por uma mãe muito católica. Aos 12 anos venci até um concurso de catequese entre todas as paróquias de Roma e tive um prémio do Vicariato. Comungava todas as primeiras sextas-feiras de cada mês, frequentava a liturgia e acreditava. Mas tudo mudou quando entrei no liceu. Li, entre os textos de filosofia que estudávamos, o “Discurso sobre o Método” de Descartes, e fiquei marcado pela frase, tornada um ícone, “Penso, logo existo”. O eu torna-se assim a base da existência humana, a sede autónoma do pensamento.
“Descartes todavia nunca renegou a fé no Deus transcendente.”
É verdade, mas pôs o fundamento de uma visão totalmente diversa e a mim aconteceu-me ter-me encaminhado por aquele caminho que depois, corroborado por outras leituras, me conduziu a um ponto totalmente diferente.
“Mas o senhor, pelo que percebi, é um não crente, mas não um anticlerical. São duas coisas muito diferentes.”
É verdade, não sou anticlerical, mas torno-me nisso quando encontro um clerical.
Sorri-me e diz-me: “Também me acontece a mim: quando tenho diante de mim um clerical torno-me de imediato anticlerical. O clericalismo não deveria ter nada a ver com o cristianismo. São Paulo foi o primeiro a falar aos gentios, aos pagãos, aos crentes de outras religiões, foi o primeiro a ensiná-lo.”
Posso perguntar-lhe, Santidade, quais são os santos que sente mais próximos da sua alma e sobre os quais se formou a sua experiência religiosa?
“São Paulo foi aquele que colocou as bases da nossa religião e do nosso credo. Não é possível ser-se um cristão consciente sem São Paulo. Traduziu a pregação de Cristo numa estrutura doutrinal que, ainda que com as actualizações de uma imensa quantidade de pensadores, teólogos, de pastores de almas, resistiu e resiste ao fim de dois mil anos. E a seguir, Agostinho, Bento e Tomás e Inácio. E naturalmente Francisco. Devo explicar-lhe o porquê?”
Francisco – seja-me permitido nesta altura referir-me assim, pois o Papa é o primeiro a sugerir-mo pela maneira como fala, como sorri, pelas suas expressões de surpresa ou de concordância, olhando-me de modo a encorajar-me a colocar até as perguntas mais difíceis e mais embaraçosas para a liderança da Igreja.
Então eu pergunto-lhe: de Paulo explicou a importância e o papel que teve, mas gostaria de saber entre aqueles que nomeou quem sente mais próximo da sua alma?
“O senhor pede-me uma classificação, mas as classificações só se podem fazer no desporto ou em algo similar. Poderei dizer-lhe o nome dos melhores futebolistas da Argentina. Mas os santos...”
Costuma dizer-se “brinca com as crianças e deixa os santos”, conhece o provérbio?
“Exacto. Todavia não quero evitar a sua pergunta porque não me pediu uma classificação da importância cultural e religiosa mas sim quem está mais próximo da minha alma. Agora digo-lhe: Agostinho e Francisco.”
E não Inácio, de cuja Ordem o senhor vem?
“Inácio, por razões compreensíveis, é aquele que melhor conheço. Fundou a nossa Ordem. Recordo-lhe que da nossa Ordem provém também Carlo Maria Martini, para mim e para si também é alguém muito caro. Os jesuítas foram e continuam a ser o fermento – não o único, mas talvez o mais eficaz – da catolicidade: cultura, ensino, testemunho missionário, fidelidade ao pontífice. Mas Inácio, que fundou a Companhia, era também um reformador e um místico. Sobretudo um místico».
Pensa que os místicos foram importantes para a Igreja?
“Foram fundamentais. Uma religião sem místicos é uma filosofia.”
Tem uma vocação mística?
“Que lhe parece a si?”
A mim parece-me que não.
“Provavelmente tem razão. Adoro os místicos; até Francisco, em muitos aspectos da sua vida, foi um místico mas eu não creio ter essa vocação, além de que é necessário compreender o significado profundo da palavra místico. O místico consegue despojar-se do fazer, dos factos, dos objectivos e até da pastoralidade missionária a fim de atingir a comunhão com os Bem-Aventurados. Breves momentos que no entanto preenchem toda a vida.”
Alguma vez lhe aconteceu a si?
“Raramente. Por exemplo, quando o Conclave me elegeu como Papa. Antes da aceitação, pedi para me retirar alguns minutos na sala ao lado daquela com a varanda para a praça. A minha cabeça estava completamente vazia e uma grande ânsia me tinha invadido. Para me relaxar, fechei os olhos e expulsei todos os pensamentos, também aqueles de recusar-me a aceitar o encargo, tal como é permitido pelo procedimento litúrgico. Fechei os olhos e deixei de ter qualquer ansiedade ou emotividade. A um certo ponto, uma grande luz me invadiu, foi por um momento mas a mim pareceu-me longuíssimo. Depois a luz dissipou-se, eu levantei-me imediatamente e dirigi-me à sala onde os cardeais me esperavam e onde se encontrava a mesa com a acta de aceitação. Assinei-a, o cardeal camerlengo confirmou-a e depois, na varanda, tivemos o ‘Habemus Papam’”.
Ficamos um pouco em silêncio e, em seguida, digo-lhe: Falávamos dos santos que sente mais vizinhos à sua alma e ficamos em Agostinho. Quer dizer-me porque o sente muito próximo de si?
“Também o meu predecessor tem Agostinho como ponto de referência. Aquele santo atravessou muitos episódios na sua vida e mudou muitas vezes a sua posição doutrinal. Teve também palavras muito duras no confronto com os hebreus, algo que nunca partilhei. Escreveu muitos livros e aquilo que me parece mais revelador da sua intimidade intelectual e espiritual são as ‘Confissões’, contêm muitas manifestações de misticismo mas não é, como muitas vezes se defende, o continuador de Paulo. Antes, vê a Igreja e a fé de um modo profundamente diverso de Paulo, talvez porque quatro séculos os separem.”
Qual é a diferença, Santidade?
“Para mim é diferente em dois aspectos, substanciais. Agostinho sente-se impotente diante da imensidade de Deus e diante dos encargos que um cristão e bispo devem concretizar. De facto ele não foi de modo nenhum incapaz, mas a sua alma sentia-se sempre aquém do que teria desejado. Outro aspecto é a graça dispensada pelo Senhor como um elemento fundante da fé. Da vida. Do sentido da vida. Quem não é tocado pela graça poderá ser uma pessoa sem mancha e sem medo, mas jamais será como uma pessoa tocada pela graça. Esta é a intuição de Agostinho.”
Sente-se tocado pela graça?
“Isso ninguém o poderá saber. A graça não faz parte da consciência, é a quantidade de luz que temos na alma, não de sabedoria ou de razão. Até você, de um modo inconsciente, poderia ser tocado pela graça.”
Sem fé? Não crente?
“A graça tem a ver com a alma.”
Eu não creio na alma.
“Pode não crer, mas não deixa de a ter.”
Santidade, havia dito que não tinha nenhuma intenção de me converter e creio que não o conseguiria.
“Isso não se sabe, mas no entanto não tenho qualquer intenção.”
E Francisco?
“É grandíssimo porque é tudo. Homem que quer fazer, que quer construir, funda uma Ordem com a sua regra, é itinerante e missionário, é poeta e profeta, é místico, constatou em si mesmo o mal e dele saiu, ama a natureza, os animais, a erva do prado e os pássaros que voam nos céus, mas sobretudo ama as pessoas, as crianças, os velhos, as mulheres. É o exemplo mais luminoso daquele ágape de que falávamos antes».
Tem razão, Santidade, a descrição é perfeita. Mas então porque nenhum dos seus predecessores escolheu este nome? E, segundo me parece, depois de si nenhum outro o escolherá?
“Isso não o sabemos, não hipotequemos o futuro. É verdade, antes de mim ninguém o escolheu. Aqui enfrentamos o problema dos problemas. Quer beber alguma coisa?».
Obrigado, talvez um copo de água.
Levanta-se, abre a porta e pede a um colaborador que se encontra à entrada para trazer dois copos de água. Pergunta-me se quero um café, respondo que não. A água chega. No final da conversa o meu copo estará vazio, mas o seu continua cheio. Tosse um pouco e começa.
“Francisco queria uma Ordem mendicante e também itinerante. Missionários com a missão de encontrar, escutar, dialogar, ajudar, difundir fé e amor. Sobretudo amor. E acarinhava uma Igreja pobre que se responsabilizasse pelos outros, que recebesse ajuda material utilizando-o para sustentar os outros, sem qualquer preocupação por si própria. Passaram-se 800 anos e os tempos mudaram, mas o ideal de uma Igreja missionária e pobre continua mais do que válida. Esta é também a Igreja que Jesus e os seus discípulos pregaram.”
Os cristãos são neste momento uma minoria. Até em Itália, que é definida como o jardim do Papa, os católicos praticantes serão, segundo algumas sondagens, entre os 8% e os 15%. Os católicos que dizem sê-lo, mas que de facto o são pouco, representam 20%. No mundo existem cerca de mil milhões de católicos e, se juntarmos as outras Igrejas cristãs, superam o os mil milhões e meio, mas o planeta é povoado por 6 a 7 mil milhões de pessoas. Vocês serão muitos, especialmente em África e na América Latina mas, ainda assim, uma minoria.
“Nós sempre fomos uma minoria mas o tema de hoje não é esse. Pessoalmente, penso que ser uma minoria seja até uma força. Devemos ser uma semente de vida e de amor e a semente é uma quantidade infinitamente mais pequena do que a massa de frutos, de flores e de árvores que dela nascem. Penso já ter dito que o nosso objectivo não é o proselitismo mas a escuta das necessidades, dos desejos, das desilusões, dos desesperos, da esperança. Devemos devolver a esperança aos jovens, ajudar os velhos, abrir para o futuro, difundir o amor. Pobres entre os pobres. Devemos incluir os excluídos e anunciar a paz. O Vaticano II, inspirado pelo Papa João e por Paulo VI, decidiu olhar o futuro com um espírito moderno e abrir-se à cultura moderna. Os padres conciliares sabiam que abrir-se à cultura moderna significava um ecumenismo religioso e o diálogo com os não-crentes. Depois disso foi feito muito pouco nessa direcção. Eu tenho a humildade e a ambição de o querer fazer.”
Até porque – permita-me acrescentar – a sociedade moderna atravessa por todo o planeta um momento de crise muito profunda – e não apenas económica, mas social e espiritual. O senhor, no início deste nosso encontro, descreveu uma geração entalada no presente. Também nós, não-crentes, sentimos este sofrimento quase antropológico. Por isso queremos dialogar com os crentes e com quem melhor os representa.
“Eu não sei se sou o que melhor os representa, mas a Providência colocou-me no lugar de liderança da Igreja e da diocese de Pedro. Farei o que está ao meu alcance para cumprir o mandato que me foi confiado.”
Jesus, como o senhor recordou, disse: ama o teu próximo como a ti mesmo. Parece-lhe que isto se concretizou?
“Infelizmente não. O egoísmo aumentou e o amor para com os outros diminuiu.”
Este é talvez o objectivo que nos é comum: ao menos nivelar a intensidade destes dois tipos de amor. A sua Igreja estará preparada a desenvolver este objectivo?
“Você o que pensa?”
Penso que o amor pelo poder temporal será ainda muito forte entre os muros do Vaticano e na estrutura institucional de toda a Igreja. Penso que a Instituição predominará sobre a Igreja pobre e missionária que o senhor desejaria.
“As coisas de facto estão assim e neste âmbito não se fazem milagres. Recordo que também S. Francisco a seu tempo teve de negociar com a hierarquia romana e com o Papa para fazer reconhecer as regras da sua Ordem. No final obtém a aprovação mas com profundas alterações e compromissos.”
O senhor seguirá o mesmo caminho?
“Certamente que não sou Francisco de Assis e não tenho a sua força e a sua santidade. Mas sou o bispo de Roma e o papa da catolicidade. A minha primeira decisão foi nomear um grupo de oito cardeais que serão o meu conselho. Não cortesãos, mas pessoas sábias e animadas dos meus próprios sentimentos. Este é o início de uma Igreja com uma organização não apenas vertical mas também horizontal. Quando o cardeal Martini falava acentuando o papel dos Concílios e dos Sínodos sabia muito bem como foi longo o caminho a percorrer naquela direcção. Com prudência, mas também com firmeza e tenacidade.”
E a política?
“Porque mo pergunta? Eu já lhe disse que a Igreja não se ocupa da política.”
Mas há uns dias fez um apelo aos católicos para se empenharem civil e politicamente.
“Não me dirigi somente aos católicos mas a todos os homens de boa vontade. Disse que a política é a primeira das actividades civis e tem um campo de acção próprio que não é o da religião. As instituições políticas são laicas por definição e operam em esferas independentes. Isto foi dito por todos os meus predecessores, pelo menos de há uns anos para cá, ainda que com acentos diversos. Creio que os católicos empenhados na política têm dentro de si os valores da religião mas têm também uma consciência e uma competência para actuar. A Igreja não ultrapassará o âmbito de exprimir e difundir os seus valores, pelo menos enquanto eu estiver aqui.”
Mas nem sempre a Igreja foi assim.
“Quase nunca foi assim. Frequentemente a Igreja como instituição foi dominada pela dimensão temporal e muitos dos seus membros, incluindo altos expoentes, têm ainda este modo de sentir. Mas deixe-me fazer-lhe uma pergunta: você, laico, não-crente em Deus, em que acredita? Você é um escritor e um homem do pensamento. Acreditará por isso em algo, terá um valor dominante. Não me responda com palavras como honestidade, procura, visão do bem comum; tudo princípios e valores importantes, certamente, mas não é isso que eu pergunto. Pergunto-lhe o que pensa da essência do mundo, até do universo. Pergunta-se a si mesmo, como todos nos perguntamos, quem somos, de onde vimos, para onde vamos. Até uma criança se coloca estas perguntas. E você?”
Agradeço-lhe a pergunta. A resposta é esta: eu creio no Ser, isto é, no tecido do qual surgem as formas, os Entes.
“E eu creio em Deus. Não num Deus católico, não existe um Deus católico, existe Deus. E creio em Jesus Cristo, a sua incarnação. Jesus é o meu mestre e o meu pastor, mas Deus, o Pai, Abba, é a Luz e o Criador. Este é o meu Ser. Parece-lhe que estamos muito distantes?»
Estamos distantes nas ideias, mas próximos como pessoas humanas, inconscientemente animadas dos nossos instintos que se transformam em pulsões, sentimentos, vontade, pensamento e razão. Nisto estamos próximos.
“Mas aquilo que você designa de Ser como o define? Quer definir como o pensa?”
O Ser é um tecido de energia. Energia caótica mas indestrutível e num permanente caos. Desta energia emergem as formas quando a energia chega ao ponto de explodir. As formas têm as suas leis, os seus campos magnéticos, os seus elementos químicos, que combinam casualmente, envolvem-se e, por fim, apagam-se sem que a sua energia se destrua. O ser humano é possivelmente o único animal dotado de pensamento, pelo menos neste planeta e no Sistema Solar. Disse que é animado por instintos e desejos mas acrescento que contém também dentro de si uma ressonância, um eco, uma vocação ao caos.
“Muito bem. Não queria que me fizesse um compêndio da sua filosofia e o que me disse é suficiente. Observo da minha parte que Deus é a luz que ilumina as trevas ainda que não as dissolva, e uma centelha daquela luz divina está dentro de cada um de nós. Na carta que escrevi, recordo ter-lhe dito que também a nossa espécie acabará mas não acabará a luz de Deus que nesse momento invadirá todas as almas e onde será tudo em todos.”
Sim, recordo bem, disse “toda a luz estará em todas as almas” o que – se me permite – dá mais uma imagem de imanência do que de transcendência.
“A transcendência fica porque aquela luz, toda em todos, transcende o universo e as espécies que naquela fase o povoam. Mas regressemos ao presente. Demos um passo em frente no nosso diálogo. Verificamos como na sociedade e no mundo em que vivemos o egoísmo aumentou muito em comparação com o amor pelos outros e os homens de boa vontade deverão trabalhar, cada um segundo as suas forças e competências, para que o amor de uns pelos outros aumente a fim de igualar e, quem sabe, superar o amor de si mesmo.”
Aqui também a política é posta em causa.
“Com certeza. Pessoalmente penso que o assim chamado liberalismo selvagem não faz senão tornar os fortes mais fortes, os débeis mais débeis e os excluídos mais excluídos. É necessária uma grande liberdade, uma total ausência de discriminação e demagogia, e muito amor. São necessárias regras de comportamento e também, se for necessário, intervenções directas do Estado para corrigir as desigualdades mais intoleráveis.”
Santidade, é certamente uma pessoa de uma grande fé, tocada pela graça, animada da vontade de relançar uma Igreja pastoral, missionária, regenerada e não ‘temporal’. Mas da maneira como fala e do quanto eu compreendo, o senhor é e será um papa revolucionário. Metade é jesuíta, metade um homem de S. Francisco, um conúbio nunca antes visto. E depois, gosta de “Promessi Sposi” de Manzoni, Leopardi e sobretudo Dostoievsky, do filme “La strada” e “Prova d’orchestra” de Fellini, “Roma cittá aperta” de Rossellini e também dos filmes de Aldo Fabrizi.
“Gosto destes porque via-os com os meus pais quando era criança.”
Aí está. Posso sugerir-lhe que veja dois filmes recém estreados? “Viva la libertá” e o filme sobre Fellini de Ettore Scola. Estou certo de que gostará.
Sobre o poder eu digo-lhe: sabe que aos vinte anos eu fiz exercícios espirituais durante um mês e meio com os jesuítas? Os nazis estavam em Roma e eu tinha desertado do recrutamento militar. Seríamos punidos com a pena de morte. Os jesuítas hospedaram-nos com a condição de fazermos exercícios espirituais durante todo o período em que estaríamos escondidos na sua casa; e assim foi.
“Mas é impossível resistir a um mês e meio de exercícios espirituais” diz-me, estupefacto e divertido.
Na próxima vez contar-lhe-ei esse episódio. Abraçamo-nos. Saímos pelas breves escadas que nos separam do portão. Peço ao Papa para não me acompanhar mas ele insiste com um gesto.
“Falaremos também do papel das mulheres na Igreja. Recordo-lhe que Igreja [a palavra] é feminino.”
E falaremos também, se quiser, sobre Pascal. Gostaria de saber o que pensa sobre esta grande alma.
“Leve a todos os seus familiares a minha bênção e peça para que rezem por mim. E você, pense em mim, pense muitas vezes em mim.”

Apertamos as mãos e Francisco fica parado com os dois dedos levantados em sinal de bênção. Eu saúdo-o da janela. Este é o Papa Francisco. Se a Igreja se tornar tal como Francisco a pensa e deseja, teremos uma mudança de era.