Morreu hoje, dia 9 de Janeiro de 2011, Vítor Alves que, com mais um grupo de corajosos militares, concebeu e dirigiu as acções que, em 25 de Abril de 1974, puseram termo a 48 anos de ditadura.
Vítor Alves mereceria, só por isso, o nosso profundo respeito. Presto-lhe aqui, neste dia triste, a mais sentida homenagem.
Os tempos atribulados, que se seguiram a essa manhã libertadora, criaram tensões entre aqueles que estiveram juntos nessa madrugada e deram origem a caminhos nem sempre coincidentes e nem sempre pacíficos.
Vítor Alves escolheu o seu campo e integrou o chamado Grupo dos Nove, com Melo Antunes e outros. Este grupo politico-militar haveria de ganhar preponderância e, a partir do Verão quente de 75, assumiria o "controlo" da situação e viria a sair vencedor em 25 de Novembro, "derrotando" os outros grupos politico-militares organizados em torno de Vasco Gonçalves e outros militares mais próximos do PCP e de Otelo Saraiva de Carvalho e outros militares mais próximos dos movimentos da esquerda revolucionária.
Não pretendo discutir este período atribulado da nossa história recente. Para isso não teria competência nem informação bastante. Nem pretendo tomar partido sobre esse mesmo período.
Todos tínhamos, nessa período rico da nossa história, o nosso lado. E o meu não era o de Vítor Alves.
Fiz esta breve introdução simplesmente para localizar o período em que contactei de perto Vítor Alves e construi a consideração e respeito que por ele ganhei. E essa consideração e respeito ganha maior importância porque foi construída na "luta". Ele dum lado e eu, com muitos outros, doutro lado. Mas sempre com um profundo respeito.
E é por isso que sinto vontade de, nesta ocasião, deixar um testemunho pessoal que, sem qualquer pretensão de escrever história, não deixará de ser um registo para quem queira conhecer aspectos particulares desse período. Vítor Alves merece-o.
No rescaldo do Verão quente e com o colapso do V Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves, forma-se um VI Governo Provisório, liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. Do elenco governamental constava, de forma um pouco inesperada, o major Vítor Alves como Ministro da Educação.
Eu trabalhava, nessa altura, na então Direcção-Geral da Administração Escolar. E, nessa altura, as coisas andavam muito agitadas na função pública.
No INE assistia-se a uma forte contestação laboral, dirigida por sectores políticos que me eram próximos. Aí teria lugar a primeira greve prolongada de um serviço da Administração Pública portuguesa. Durante 28 dias os trabalhadores do INE paralisaram os serviços.
Também no Ministério da Educação começava a entrar em ebulição. Os trabalhadores da então Direcção-Geral da Educação Permanente tinham iniciado uma luta pela integração nos quadros dos tarefeiros que aí prestavam serviço e esse movimento deu o mote para que outros serviços se lhe juntassem. Nascia, então, o movimento que ficou conhecido por "Reparação de Injustiças".
Para isso constitui-se, à margem das estruturas Sindicais lideradas por forças ligadas ao PCP, aquilo a que, na altura, se designou por Intercomissões de Trabalhadores do Ministério da Educação.
E é aqui que entra Vítor Alves.
Mal tinha ainda tido tempo para ocupar o Gabinete do 12º andar da Avenida 5 de Outubro, Vítor Alves foi solicitado a receber esta estrutura de Comissões de Trabalhadores. Marcou, com uma rapidez que não esperávamos, a reunião solicitada.
Calmo, como sempre o conheci, ouviu-nos, ouviu o nosso caderno reivindicativo e prometeu uma resposta em 15 dias.
Tínhamos, em diálogo connosco, um militar de Abril, de trato afável, compreensivo e que mais parecia um civil e que demonstrou, logo nessa altura, ter espírito democrático e dialogante. A primeira impressão foi, por isso, boa.
Ficamos, pois, esperançados, apesar da desconfiança "militante" que caracterizava os lideres dos movimentos reivindicativos da época que ,neste caso, se reclamavam da chamada esquerda revolucionária. Deixámos, por isso,uma "ameaça": estávamos decididos a avançar para uma greve se, findo esse prazo, não tivéssemos uma resposta positiva.
Durante esses 15 dias não aconteceu nada de especial. Aguardávamos uma resposta. Como havia sido prometido.
Findo o prazo fizemos o que nos competia. Contactámos o Gabinete de Vítor Alves, através de Maria João Seixas, então membro do Gabinete de Vítor Alves - não sei se era Secretária ou Assessora, mas seguramente uma grande amiga do militar de Abril, para além de uma grande senhora da cultura portuguesa, que também conheci nessa época e que vim a encontrar anos mais tarde como Assessora para a Cultura do Primeiro Ministro António Guterres - e do sempre chefe de Gabinete Comandante Cavaleiro Ferreira, para marcar uma audiência. Foi marcada quase de imediato.
Fomos recebidos com toda a naturalidade. O Ministro Vítor Alves não tinha, contudo, respostas para as nossas reivindicações. Propunha-nos iniciar um processo negocial.
Como vivíamos a época de "JÁ", respondemos que sim senhor. Iniciaríamos um processo negocial mas a greve começaria no dia seguinte.
E assim foi. No dia seguinte realizaram-se RGT's - Reuniões Gerais de Trabalhadores - em todos os serviços do Ministério e a proposta da Intercomissões, de iniciar uma greve pela reparação de injustiças, seria aprovada quase que por unanimidade nos diferente locais de trabalho.
Iniciava-se, assim, a segunda mais significativa greve de trabalhadores da Administração Pública, a seguir à greve do INE, mas desta vez envolvendo um Ministério inteiro. O Ministério da Educação permaneceu parado durante 9 dias seguidos.
Recordar esse tempo é recordar um processo inesquecivel. Em cada um dos 9 dias de greve se realizavam plenários de trabalhadores, com início às 9 horas da manhã. Com níveis de participação indescritíveis. Os trabalhadores compareciam todos em massa. Em todos os locais de trabalho.
O processo negocial desenvolvia-se pelas noites dentro. Discutia-se com a equipa governamental durante a noite e com os trabalhadores no dia seguinte. Nada se decidia sem ouvir os trabalhadores.
A Intercomissões montou o seu quartel general no Gabinete do Director-Geral da Administração Escolar, no 5º andar da Av. 5 de Outubro, porque o lugar estava vago, com a saída do então Director-Geral, e meu amigo, Eng. Prostes da Fonseca.
Aí se afinava a estratégia - nem sempre de forma pacífica e muitas vezes muito tumultuosa - se ultimavam as propostas.
Propostas feitas discutiam-se pela noite com o Governo. No dia seguinte voltava-se aos plenários. E assim foi durante 9 dias e 8 noites.
Nove dias depois chegávamos a acordo que foi consagrado num documento que, de forma exaustiva, fixava os critérios a que deveria obedecer o processo de reparação de injustiças no Ministério da Educação.
Esse acordo está escrito e foi, talvez, o primeiro documento de negociação colectiva da história dos processos negociais da Função Pública.
Está assinado, pelo Governo, por Vítor Alves e, pelos trabalhadores, pelo Secretariado da Intercomissões. É um documento histórico de um processo reivindicativo que faz parte, de pleno direito, da história do movimento sindical da função pública.
No fim da greve,numa altura em que nem sequer havia lei da greve e em que não era pacífica nem clara a sua permissão na função pública,importava saber se os dias de greve deveriam ser descontados nos vencimentos dos trabalhadores.
Identificado e discutido o problema, rapidamente se chegou a acordo com o Ministro Vítor Alves: Os dias de greve não deveriam ser descontados. E não foram.
Por vicissitudes várias, que agora seria fastidioso contar, o processo de reparação de injustiças, não viria a concretizar-se completamente como foi acordado. E talvez, visto à posteriori, não o devesse ter sido.
Mas não é isso que interessa aqui e agora.
O que quis, com este testemunho que só me responsabiliza a mim- no qual omito os nomes dos intervenientes neste processo,não só porque não tenho o direito de os revelar sem lhes perguntar, mas também porque, estando a escrever de memória, me poderia esquecer de algum, passados que são 36 anos sobre os acontecimentos - foi prestar uma homenagem a Vítor Alves,com que construímos uma relação de respeito e cumplicidade e, diria mesmo, de amizade, que nos permitia, quando nos encontravámos, recordar, sem qualquer mágoa , esses momentos difíceis mas que, estou certo, contribuíram para aprofundar o processo de aprendizagem de vivência democrática que Vítor Alves, tão bem, soube protagonizar.
A grandeza de Vítor Alves, como grande senhor e grande democrata que era, levou-o a aceitar participar, a convite da Intercomissões de Trabalhadores do Ministério da Educação, num jantar realizado na Churrasqueira do Campo Grande, para confraternização dos protagonistas de ambos os lados. Que afinal, e muito provavelmente, era só um.
No dia de hoje, em que nos deixa um dos mais ilustres militares de Abril, deixo esta modesta homenagem a um homem que aprendi a respeitar e em que, estou certo, sou acompanhado por todos os que com ele conviveram e viveram aquela aventura.
HONREMOS A MEMÓRIA DE VÍTOR ALVES.
OBRIGADO VITOR ALVES
PS: Escrevi este texto de memória, sem consulta a qualquer documento, pelo que o mesmo pode conter uma ou outra imprecisão. Que me desculpem os que, comigo, viveram estes momentos e que, eventualmente, tenham outra leitura dos factos.
A minha motivação foi, tão só, deixar neste dia, um registo de uma homenagem merecida a Vitor Alves.